SOBRE SANTO AGOSTINHO
Agostinho de Hipona, também conhecido como Santo Agostinho, foi um filósofo, teólogo e bispo cristão importante na história da Igreja e uma das figuras mais influentes na tradição cristã. Ele nasceu em 13 de novembro de 354 e faleceu em 28 de agosto de 430. Agostinho é amplamente reconhecido por suas contribuições significativas para a teologia cristã e a filosofia, particularmente por sua defesa da doutrina da graça divina e suas reflexões sobre o pecado original, a livre vontade e a predestinação.
As obras mais conhecidas de Agostinho incluem "Confissões" ("Confessiones"), que é uma autobiografia espiritual que descreve sua jornada de vida e conversão ao cristianismo, "A Cidade de Deus" ("De Civitate Dei"), uma obra monumental que aborda questões teológicas e filosóficas e discute a relação entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, e também "Diálogo Sobre a Felicidade", que apresentamos nesta sequência de estudos.
Agostinho influenciou profundamente a teologia ocidental e a filosofia, e suas ideias desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da doutrina cristã e no pensamento posterior, especialmente durante a Idade Média. Suas reflexões sobre a graça, o mal, a justiça divina e a autoridade da Igreja tiveram um impacto duradouro na teologia cristã e continuam a ser estudadas e debatidas até hoje, por isso é lembrado como um dos Pais da Igreja.
INTRODUÇÃO
A obra "Diálogo sobre a Felicidade" (em latim, "Dialogus de Felicitate") foi escrito por volta de 386 d.C., quando Agostinho de Hipona ainda estava em sua fase de busca espiritual e filosófica, antes de sua conversão ao cristianismo.
O "Diálogo sobre a Felicidade" é um diálogo filosófico que Agostinho escreveu em forma de conversa entre ele e seu amigo, Adeodatus, que era seu filho ilegítimo. No diálogo, Agostinho explora questões profundas relacionadas à busca da felicidade e do significado da vida. Ele aborda várias questões filosóficas, morais e existenciais, procurando compreender a natureza da felicidade e como alcançá-la.
Agostinho argumenta que a verdadeira felicidade não pode ser encontrada nas coisas materiais ou no sucesso mundano, mas sim na busca de Deus e na contemplação divina. Ele enfatiza a importância da fé e da busca espiritual como caminhos para a felicidade genuína. O diálogo também aborda questões sobre a natureza do mal e do sofrimento, explorando como essas realidades se relacionam com a busca da felicidade.
Embora o "Diálogo sobre a Felicidade" seja uma obra relativamente menos conhecida de Agostinho em comparação com suas obras mais famosas, como "Confissões" e "A Cidade de Deus," ele fornece uma visão valiosa de seu pensamento em desenvolvimento e de suas reflexões sobre as questões existenciais e filosóficas que o preocupavam na época. Esse livro é um exemplo da influência do pensamento platônico na filosofia de Agostinho, pois ele usa elementos da filosofia de Platão para abordar as questões da felicidade e da busca espiritual.
CAPÍTULO I
1. Se o método racional e a própria vontade nos conduzisse ao porto da filosofia, a partir do qual já nos encaminhamos para a região sólida da felicidade, não sei se eu não diria, temerariamente, ó meu mui ilustre e grande Teodoro, que muito menos homens lá chegariam, ainda que, já agora, conforme se vê, são muito raros e poucos os que lá chegam.
De fato, porque fomos lançados para este mundo, como que ao acaso e sem orientação, ou por Deus, ou pela natureza, ou pela necessidade ou a nossa vontade, ou pela confluência de algumas ou de todas estas causas – assunto este, decerto, muito obscuro cujo esclarecimento, no entanto, tomaste a teu cargo –, quantos saberiam para que local se dirigir ou por onde regressar, a não ser que, um dia, alguma tempestade, considerada pelos ignorantes como algo de adverso, contra a nossa vontade e resistência, nos impelisse violentamente, viajantes ignorantes e errantes, para a mais desejada terra.
2. Ora, parece-me ver três classes, como que de navegantes, entre os homens aos quais a filosofia pode acolher.
A primeira é a daqueles que, quando a idade da razão se assenhoreia deles, com um pequeno esforço e a pulso dos remos, se afastam da proximidade e se recolhem à tranquilidade donde levantam um sinal muito luminoso de alguma sua obra para os outros cidadãos serem advertidos e a ela se acolherem.
A segunda, ao contrário da anterior, compreende aqueles que, desiludidos pelo aspecto muito enganador do mar, optaram por avançar por ele adentro e atrevem-se a peregrinar longe da pátria, dela se esquecendo muitas vezes. Se – não sei como ou por que modo oculto – lhes bate o vento pela popa, vento que consideram favorável, adentram-se, ufanos e regozijantes, nas profundezas da miséria, porque uma muito enganadora serenidade dos prazeres e das honras os afaga de todos os lados. Que outra coisa, portanto, se deve desejar para estes homens senão alguma contrariedade precisamente nas coisas em que eles, como que lançados, se encontram envolvidos, e se isso não for suficiente, uma tempestade muito feroz e um vento que sopre em direção contrária os conduzam, mesmo gemendo e chorando, até às alegrias certas e sólidas?
Mas a maioria dos que pertencem a este grupo, porque ainda não se afastaram para muito longe, não são reconduzidos assim por contrariedades tão violentas. Estes homens são os que têm sido levados, sob o pretexto de nada terem que fazer, para os livros de homens doutos e sábios, em virtude das trágicas vicissitudes do destino ou das angustiantes dificuldades dos negócios frívolos, e deste modo despertam, como que num porto, donde nenhuma promessa os arranca deste mar de sorriso tão enganador.
Ainda existe, no meio, uma terceira classe, formada por aqueles que, ou no limiar da sua adolescência, ou vagueando pelo mar há já mesmo muito tempo, contemplam, apesar de tudo, alguns sinais que os levam a recordar, ainda no meio das ondas, a sua dulcíssima pátria. Então a ela regressam, sem se desviarem ou demorarem, quer por uma rota adequada quer, a maior parte das vezes, ou errando pela neblina, ou avistando os astros que as ondas submergem, ou presos por algumas seduções, deixam passar o tempo para uma boa navegação e erram durante um longo período, e, muitas vezes, arriscam a sua própria vida. Frequentemente, e em virtude da fragilidade dos bens, também lhes sobrevém alguma calamidade opondo-se aos seus esforços e compelindo-os para a desejada e tranquila pátria.
3. Ora, todos estes homens que, por várias maneiras, são conduzidos para a região da felicidade devem afastar-se energicamente e evitar com cautela um enorme rochedo que se ergue na própria embocadura do porto e causa grandes embaraços aos que nele entram. É que ele brilha de tal forma e está revestido de uma luz tão enganadora que se apresenta como se fosse a própria terra da felicidade, prometendo a satisfação dos desejos, não só aos que chegam e estão prestes a entrar, como também, frequentemente, aliciando os homens que já se encontram no porto e retendo-os, a maior parte das vezes, com a sedução daquela enorme altura, deliciando-os com um imponente espetáculo, os leva a desprezar todos os outros navegadores. Eles previnem, no entanto, os que se aproximam a fim de que não se enganem com os escolhos escondidos nem julguem ser fácil escalar o rochedo e ensinam com suma benevolência por qual caminho, em virtude da proximidade da terra, se deve entrar sem perigo. Deste modo, desejosos de vanglória, mostram-lhes o lugar seguro. De facto, que outro rochedo quer a razão apresentar como temível para os que se aproximam ou já se dedicam à filosofia, senão um arrogante zelo pela vanglória? Este rochedo não tem qualquer consistência interior nem firmeza: fendendo-se, sob os orgulhosos que nele caminham, aquele terreno tão frágil, enterra-os e engole-os nas trevas medonhas, arrebatando-os assim da magnífica pátria que estavam prestes a alcançar.
4. Sendo assim, recebe, meu caro Teodoro – visto que para alcançar o que desejo te considero o único capaz de me auxiliar e sempre te admirei –, recebe, dizia eu, este relato onde te mostrarei em qual dos três grupos de homens está aquele que a ti se dirige, em que lugar me encontro e que tipo de auxílio reclamo de ti, com toda a segurança.
Desde que li, quando aos dezanove anos frequentava a escola de retórica, o livro de Cícero que se intitula Hortênsio, inflamei-me de tal maneira pelo amor da filosofia que imediatamente me entreguei ao seu estudo. Porém, nem sequer me faltaram as névoas a perturbar a minha viagem e durante muito tempo, confesso, contemplei os astros que se afundavam no oceano e me conduziam para o erro. É que uma certa superstição pueril fazia-me perder todo o espírito crítico; quando ganhei mais coragem, afastei de mim aquele denso nevoeiro e convenci-me de que se deve acreditar mais nos que ensinam do que naqueles que mandam. Caí assim no meio de uns homens que veneram a luz que os olhos vêem como se fosse a realidade suprema e divina. Não concordava com eles, mas pensava que com aqueles véus escondiam algo de importante que me seria revelado quando, enfim, estivessem dispostos a levantá-los. Mas, após ter discutido com eles, abandonei-os e depois de ter atravessado este mar, os Acadêmicos apoderaram-se durante muito tempo do leme da minha vida, no meio das ondas, em luta com todos os ventos. Seguidamente, acostei a estas terras onde aprendi a conhecer o norte em que devia depositar confiança. Compreendi muitas vezes, de facto, quer pelo nosso sacerdote, quer por algumas conversas que tive contigo, que não se deve de forma alguma conceber Deus como corpóreo, nem a alma, que é a realidade mais próxima de Deus.
No entanto, confesso que os atrativos de uma esposa e das honras me retinham, não me deixando aproximar com a rapidez necessária do seio da filosofia; só na altura em que essas ambições fossem alcançadas é que me apressaria para aquela enseada, com as velas desfraldadas e à força de remos – o que acontece a poucas e felicíssimas pessoas – e aí repousaria. Foi então que li algumas obras de Platão, por quem, sei, nutres grande admiração: confrontando-as como pude com os que pela autoridade nos transmitem os mistérios divinos, entusiasmei-me de tal maneira que, se a consideração por alguns homens me não demovesse, quereria ter quebrado todas aquelas âncoras.
Que é que me faltava senão uma tempestade – tida como desfavorável – que, porque me encontrava preso a coisas vãs, viesse em meu auxílio? Foi então que se apoderou de mim uma forte dor de peito e não tendo saúde para suportar o fardo de uma profissão que me levaria, talvez, navegando até às sereias, a tudo renunciei e conduzi a minha barca, agitada e fendida, para a tão desejada tranquilidade.
5. Agora já vês em que filosofia navego, como num porto. Mas é tão extenso e tão vasto este porto que, apesar de ser menos perigoso, não exclui por completo o erro. Por isso, não sei por que parte da terra, a única sem dúvida verdadeiramente feliz, me devo aproximar e alcançar. Que coisa de seguro consegui eu, de facto, se até hoje hesito e vacilo quanto ao problema da alma?
Suplico-te, pois, em nome da tua virtude, humanidade, e da união e comunhão das nossas almas, que me estendas o auxílio da tua mão direita, isto é, que me ames e creias que, pela minha parte, te corresponderei a esse afeto. Se o obtiver, acredito que facilmente e com pouco esforço alcançarei a felicidade em que, julgo, tu já te encontras.
Como não encontrei outra forma de me manifestar, pensei em escrever-te e dedicar-te a primeira das minhas discussões, porque julgo que resultou muito religiosa e digna do teu nome, e deste modo fiques a conhecer o que faço e como congrego aqueles que me estão intimamente ligados para que possas compreender melhor em que estado de espírito me encontro. Trata-se de uma oferta de facto muito conveniente, e com toda a razão, pois discutimos entre nós sobre a felicidade e não vejo que mais mereça ser considerado um dom de Deus.
Não temo a tua eloquência. Não posso temer o que amo e não alcancei, e receio muito menos a grandeza da tua condição, porque sendo embora grande ela é sempre favorável para aqueles que domina e, a esses, torna-os felizes. Peço, por conseguinte, a tua atenção para esta minha oferenda.
6. Estávamos em 13 de Novembro, dia do meu aniversário natalício. Depois de um almoço bem frugal, que não fosse obstáculo às nossas faculdades, convidei, não só os que naquele dia, mas sempre, conviviam connosco, a instalarem-se na sala dos banhos, lugar muito abrigado e adequado para este tempo.
Encontravam-se lá – não hesito em mencioná-los, para que a tua bondade os possa conhecer –, em primeiro lugar, a nossa mãe, a quem, em virtude do seu mérito, devo tudo o que sou; em seguida, o meu irmão Navígio; Trigécio e Licêncio, meus alunos e concidadãos. Não quis que faltassem os meus primos direitos Lartidiano e Rústico porque, apesar de não terem passado por nenhuma escola de gramática, considerei que o seu bom senso seria necessário para o tema que ia levantar. Também estava connosco o meu filho Adeodato, o mais novo de todos mas cuja inteligência, se o amor por ele me não deixa enganar, prometia grandes coisas.
Quando todos prestaram atenção, comecei deste modo.
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